Por iniciativa do deputado estadual Iran Barbosa, do PT, a Assembleia Legislativa de Sergipe (Alese) realizou Audiência Pública para debater os 55 anos da ditadura civil-militar que se instalou no Brasil entre 1964 e 1985. Discutiram o tema o professor doutor José Vieira da Cruz, historiador e vice-reitor da Universidade Federal de Alagoas (UFAL), e a professora doutora Andréa Depieri de Albuquerque Reginato, do Departamento de Direito da Universidade Federal de Sergipe (UFS) e secretária-executiva da Comissão Estadual da Verdade Paulo Barbosa de Araújo.
Também participaram do debate o advogado José Alvino Santos Filho, presidente do Observatório dos Atos Atentatórios contra a Democracia da OAB de Sergipe, e a procuradora Martha Carvalho Dias de Figueiredo, do Ministério Público Federal. Com o plenário e as galerias tomadas por populares, representantes de entidades do movimento sindical e social, e por parentes de pessoas que viveram a ditadura, o momento de forte emoção ficou reservado para os depoimentos de Delmo Naziazieno, Marcélio Bomfim, Milton Coelho e João Augusto Gama, quatro ex-presos políticos do regime de 64.
Para o deputado Iran Barbosa, que solicitou o registro de um minuto de silêncio em memória de todas as vítimas da ditadura civil-miliar que se instalou a partir do 1º de abril de 1964, o momento vivido pelo país exige de todos e todas muita reflexão e conhecimento sobre tudo o que aconteceu durante os chamados Anos de Chumbo.
“O povo que conhece a sua história tem muito mais facilidade de enfrentar os discursos e as construções de negação do que aconteceu e de não permitir que aqueles momentos duros voltem a se repetir. Não podíamos ficar silenciosos no dia de hoje e num momento em que, infelizmente, setores de nossa sociedade, em especial autoridades constituídas, fazem chamamento para se comemorar o golpe de 64”, afirmou.
“A nosso ver, uma atitude em total desacordo com o que prega a nossa Constituição. Conclamar as pessoas a comemorarem o ato que inaugurou uma ditadura sanguinária em nosso país, que perseguiu, que torturou, que matou, que expulsou, que sumiu com pessoas e que nos gerou um atraso profundo, é atentar contra a democracia e contra o Estado Democrático de Direito”, analisou o parlamentar.
O petista agradeceu a todos que compareceram e contribuíram com a Audiência Pública, em especial, aos membros da Comissão Estadual da Verdade, que foi parceira na construção do evento, e aos ex-presos políticos, que enriqueceram o momento, dando seus testemunhos de parte do que sofreram nos porões da ditadura militar em Sergipe.
Entulho autoritário
Para a professora doutora Andréa Dipieri, apesar de o 1º de abril ser tradicionalmente lembrado como o Dia da Mentira no Brasil, a data não deve ser jamais de distorção da verdade, nem dia de reescrever a história, tampouco de negar a ditadura civil-militar de 64, os seus horrores e a herança autoritária que deixou, como pretendem alguns. “Hoje é dia de rememorar os fatos para que nunca se esqueça e para que nunca mais aconteça”, resumiu a professora, parafraseando o slogan da Comissão Nacional da Verdade.
Segundo ela, a falta de uma transição completa e efetiva entre a ditadura e a democracia atual fez com que o entulho autoritário espalhado nas instituições, no comportamento das pessoas e na forma de funcionamento do Estado brasileiro permanecesse intocado.
“E é exatamente neste momento em que vivemos, de posições políticas radicalizadas, que esse entulho aparece com mais força e coloca a democracia sob ameaça. Isso tudo tem a ver com o processo incompleto de transição que o Brasil optou por fazer”, explicou.
Para Depieri, não é razoável ao país negar os fatos comprovados do que foi o regime de 64. Para ela, as atitudes e posições negacionistas não podem prosperar, ainda que possa haver diferentes pontos de vista que venham a justificar o golpe militar, como quem autorizou, por quais razões, a quem o golpe beneficiou ou que forças políticas, internas e externas, os militares estariam combatendo.
“Evidente que aí teremos uma gama diversa de interpretações, mas os fatos são os fatos: vivemos um regime de exceção onde houve cassações, onde o direito de reunião foi suprimido, onde a censura controlava as diversões públicas, onde o direito a habeas corpus foi suspenso, e onde houve torturas, execuções, entre outras atrocidades, por 21 anos. Isso tudo são fatos que precisamos estar resgatando a todo momento para que eles não se repitam”, esclareceu a professora doutora.
‘Descomemorar’ 64
Para tratar dos 55 anos de ditadura civil-militar no Brasil, o professor doutor José Vieira da Cruz trouxe recortes da história sergipana e brasileira que constam no seu livro “Da autonomia à resistência democrática: movimento estudantil, ensino superior e a sociedade em Sergipe, 1950-1985”. Para Vieira, diante dos fatos já devidamente comprovados do período, é preciso “descomemorar” a data e refletir sobre os impactos dos 21 anos de ditadura no presente.
“O golpe civil-militar de 1964 desarticulou uma experiência democrática importante da sociedade brasileira, impulsionou uma série de arbitrariedades, inclusive com cassações de parlamentares, prefeitos e governadores; desarticulou também importantes experiências de educação e de experiências ligadas aos trabalhadores do campo e da cidade; sobretudo, deixou uma herança muito ruim para a nossa sociedade que até hoje tem efeitos nocivos para a consolidação de um Estado Democrático de Direito”, afirmou.
“Foram 21 anos de escuridão e, após sairmos do regime, mesmo com a Constituição de 1988, a sociedade brasileira ainda se esforça para reviver essa história, passando pelas Comissões da Verdade, para consolidar a nossa democracia. Isso exige que tenhamos clareza que períodos como o que vivemos, entre 1964 e 1985 precisam ser lembrados para que nunca mais aconteçam. O deputado Iran Barbosa e a Comissão Estadual da Verdade estão de parabéns por realizar, dentro de uma Casa Legislativa, um debate tão importante para a sociedade sergipana e brasileira”, completou o professor doutor.
Ainda de acordo com professor Vieira, é central lembrar, com profundidade e fundamentação, que o golpe de 64 e a ditadura civil-militar instalada foram eventos extremamente negativos para o Brasil, sendo um momento que precisa ser conhecido e lembrado pelos brasileiros para que não se passe novamente por experiências de cunho ditatorial.
“Precisamos resistir sempre, consolidando e fortalecendo os caminhos que nos levam à democracia. Ditadura nunca mais”, reforçou o historiador.